segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

A polêmica em torno da prova de Literatura do PISM III: tentando ver além do certame

Chego com atraso à discussão e, talvez, não devesse escrever nada a respeito do assunto uma vez que a Universidade Federal de Juiz de Fora, da qual sou aluno (graduando do curso de Letras), já se manifestou a respeito e, por outro lado, já foi bastante questionada em sua posição arbitrária por alunos que prestaram a prova do PISM III e seus professores que mencionaram a possibilidade de levar o tema a julgamento.

Apesar do atraso e do receio de estar me metendo em assunto "já resolvido", opto por dedicar algumas linhas ao tema e isto porque [1] não tenho a pretensão de que meu blog seja muito lido e [2] ainda que eu tenha alguns leitores, não quero tratar do problema em si, mas das inquietações que ele produz em mim como estudante de Letras, como amante de literatura e, principalmente, como futuro professor. A ideia aqui é ir além do processo de seleção.

Que fique claro: a alegação dos alunos é legítima. Eles cobram da universidade coerência com relação ao que foi proposto no edital da prova e que, sabe-se, orienta sim o processo de preparação dos alunos, ainda que este não seja o objetivo da instituição (a julgar pela justificativa dada ao indeferimento dos recursos recebidos)*. Ou seja, o justo seria cancelar a prova e reaplicá-la com questões que estejam em concordância com o edital. Para o próximo PISM, há duas opções para evitar problema semelhante: mudar o edital ou mudar o método de ensino das escolas de Ensino Médio e dos cursinhos pré-vestibulares (o que acho difícil).

Aí chego a um ponto que me parece nevrálgico e que me chama a atenção há algum tempo. Em 2010, em um artigo escrito em parceria com uma professora argentina, reivindicávamos um espaço autônomo e próprio para a Literatura nas escolas de nossos dois países. Apesar de alguns problemas de escrita e conceituais que me tem feito pensar em uma ampliação e reescritura do artigo, ali estão contidas algumas ideias interessantes. Vejamos:

[a] Apontávamos para a indeterminação da Literatura como objeto de ensino particular provocada pela recomposição dos currículos escolares nos anos 90. Os novos currículos "integraram" as aulas de gramática e literatura (até então mais ou menos autônomas) às aulas de Língua Portuguesa com vistas ao desenvolvimento da competência comunicativa total dos alunos, mas não levou em conta o aspecto metodológico relativo à transposição didática do aparato crítico necessário para abordar uma obra literária fora de uma aula específica que se debruçasse sobre o assunto.

[b] Assinalávamos ainda que a inclusão do texto literário no rol de gêneros textuais em circulação na sociedade abriu espaço para sua abordagem em termos unicamente estruturais (narrador, personagens, tempo, espaço, características de época, etc.) e, até mesmo, para seu menosprezo quando os professores decidem focalizar gêneros textuais mais "úteis". Além disso, essa proposição tende a diminuir as chances de apresentar o texto literário como objeto estético, com todas as implicações que essa outra classificação traz consigo.

Creio que estes dois pontos ajudam a visualizar uma parte do problema. Pelo menos aquela que, na minha avaliação, é a mais preocupante: qual o lugar da Literatura na escola? Como aluno de escolas públicas estaduais durante o Ensino Fundamental, poucas vezes vi professores incentivarem a leitura de textos literários como parte de um projeto pedagógico. Quando isso ocorreu, foi uma atitude incidental, individual  e isolada de alguns profissionais. Por sorte, algumas das professoras que faziam isso cruzaram meu caminho. 

Já durante o Ensino Médio, que cursei no antigo CTU (que não é um cursinho pré-vestibular, diga-se passagem), as obras indicadas para leitura foram, desde sempre, aquelas que a UFJF selecionava para o PISM, independente do módulo (I, II ou III). Dizendo de outro modo, em minha trajetória estudantil pude observar duas coisas: ou a aula de Literatura simplesmente não existiu (ou ainda não existe) ou ela existiu (e ainda existe) apenas para responder a uma exigência que acenava (e ainda acena) ao final da nossa trajetória escolar - os processos seletivos para ingressar no Ensino Superior. 

Que ninguém se engane. Frente a esse panorama o texto literário não aparece na sala de aula como objeto estético e, como consequência óbvia, não é tratado como tal. Outro ponto: as aulas de Literatura tampouco tem funcionado como aulas para formação de leitores (aqueles que, pela prática constante, poderiam desenvolver habilidades e competências para abordar textos literários). Vamos e venhamos: obrigar o aluno a ler para fazer uma prova já tem se mostrado como estratégia pouco eficiente de incentivo à leitura e, mais que isso, de capacitação à análise de obras literárias.

Volto ao artigo de 2010. Além de questionar o (não-)lugar da Literatura, apontávamos também alguns problemas práticos que se apresentam durante o trabalho com obras literárias quando são consideradas como gêneros textuais de maneira muito rasa. Dizíamos que os alunos confundem textos e obras literárias, além de serem expostos apenas a fragmentos destas últimas, quase sempre selecionados pelos autores de livros didáticos e apresentados deslocados de sua totalidade apenas para ilustrar um gênero a mais que circula na sociedade. Inclusive, pode-se questionar se os alunos estão tendo acesso a uma obra literária ou a um meta-texto, a um discurso reportado (e manipulado), que visa direcionar/treinar seu processo de leitura. 

Qualquer semelhança com apostilas de cursinhos, que usam à exaustão a citação de "fragmentos-chave" e listas com elementos fundamentais (narrador, personagens, tempo, espaço, características de época, etc.) para a "compreensão" da obra não é mera coincidência. Que fique claro: não estou criticando os cursinhos como instituições, estou apenas focalizando práticas de ensino de Literatura e me valendo de exemplos práticos que qualquer olhada rápida nos materiais dos alunos irão confirmar como sendo ao menos verossímeis. 

Temos aqui um ponto complicado. Se as escolas públicas regulares de Ensino Fundamental não trabalham a Literatura ou a trabalham de modo não autônomo, sem abordar seu repertório crítico particular e se as  escolas públicas regulares de Ensino Médio mantém igual postura ou atrelam o conteúdo ao processo de seleção dos cursos superiores, as possibilidades de ensino da disciplina são poucas ou pequenas ou inexistentes. Eu me arrisco a dizer que ao vincular as indicações de leitura aos PISM, PASES (processo seriado da UFV) e demais concursos da vida, as escolas públicas estão igualando-se aos cursinhos que, a contragosto e contraditoriamente, me vejo na posição de reconhecer como sendo um dos poucos lugares em que a Literatura constitui um objeto de ensino à parte, apesar de trabalhada com equívocos. Para encerar o texto, aponto dois equívocos que me chamam a atenção. De novo vale ressalvar: não o faço com pretensão de ser lido ou de apresentar solução ao problema que motivou a redação do artigo.

* Equívoco grave: dentro do quadro que tracei com linhas grosseiras, ignora-se que a obra literária é um objeto estético e, assim, um artefato cultural. Cito do já mencionado artigo (em espanhol): La obra literaria es un objeto estético creado en el marco de la cultura y se inscribe en un diálogo con todo lo que produjo la especie humana a lo largo de su presencia en la Tierra. Es una forma de arte y el arte es una respuesta de los hombres al mundo que les cerca; es una manera de otorgar sentido y valor simbólico a los hechos cotidianos. Ou seja, ler literatura dentro de outra perspectiva é que poderá permitir aos alunos desenvolver habilidades e competências para construir significados não apenas para o texto, mas com o texto, levando adiante um processo de reflexão que redimensione sua própria vida e seu estar no mundo.
 
* Equívoco problemático, perigoso e até ingênuo: o fato de professores universitários de Língua Portuguesa e Literatura, formadores de futuros professores, desconhecerem como se dá o processo de ensino da Literatura nas escolas, se e quando ele existe. Tenho a impressão de que é problemático, perigoso e até ingênuo acreditar que esse ensino acontece "da mesma maneira" que nas salas de aula da universidade e, mais, acreditar que existem "competências [sendo] cumulativamente construídas" quando recebem a cada semestre alunos cada vez "menos preparados", que sempre contribuem com problemas novos para seu trabalho docente. 

(Okay, imagino que eu já devia ter parado de escrever porque com este último parágrafo, escrito por si mesmo, no fluxo da linguagem, compro briga desnecessária com pessoas que conheço e ainda vejo nos corredores da faculdade em dias de aulas).

* Apenas para esclarecer aos leitores que não são de Juiz de Fora, reproduzo o trecho da notícia divulgada na imprensa local: 

"o aluno não deve ser 'treinado' para ler textos e/ou autores específicos, mas sim saber ler - em outras palavras, interagir, construir significação - qualquer texto de literatura." O documento aponta ainda que "as questões da prova não fogem aos programas porque o foco não foi cobrar conteúdos específicos previamente designados como pré-requisito para a sua execução. Ao contrário, as questões têm como prerrogativa exclusiva a avaliação da capacidade do candidato lidar com textos de apelo estético, averiguando justamente a aquisição e consolidação dessas habilidades. Para tal, foram apresentados aos candidatos textos diante dos quais eles pudessem demonstrar o seu grau de aquisição e consolidação dessas habilidades e competências previstas e cumulativamente construídas ao longo das três séries do ensino médio." http://www.tribunademinas.com.br/cidade/ufjf-indefere-pedido-de-anulac-o-de-provas-de-literatura-do-pism-iii-1.1220548